CONTO
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Conto "Restos de carnaval", de Clarice Lispector |
É uma narrativa curta, cujo enredo desenvolve-se em torno de um único conflito. Esse conflito cria uma situação de tensão, que domina quase toda a narrativa e prende a atenção do leitor até o desfecho.
Momentos da narrativa em um conto
- Situação inicial - Ambientação da história, com rápida apresentação dos fatos, cenário, personagens. É uma situação de calmaria.
- Conflito - quebra da calmaria inicial, com o surgimento de um "problema". Esse problema vai se desenvolver durante quase todo o conto.
- Clímax - Momento de máxima tensão da narrativa, é o auge do "problema". Algo do tipo "pior, não fica!"
- Desfecho - Resolução do conflito, logo após o clímax. Geralmente rápido e inesperado.
Dentre os tipos mais conhecidos, temos os Contos de Fadas, os Contos Fantásticos, os Contos de mistério e de terror... Cada um deles tem sua especificidade quanto à linguagem, à temática, à época e lugar onde as histórias se passam, aos tipos de personagens. Mas todos eles seguem a mesta estrutura narrativa: o "problema" se desenrola durante quase toda a história e rapidamente se resolve ao final, dando um susto no leitor!
Restos
do carnaval
Clarice Lispector
Não,
não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou
para a minha infância e para as quartas feiras de cinzas nas ruas
mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou
outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando
a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que
viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar
a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse
de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças
do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se
vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta
em mim. Carnaval era meu, meu.
No
entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a
um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação
deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de
escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se
divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as
com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco
de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto
como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando
tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada
já me tornava uma menina feliz.
E
as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário
porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o
rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu
pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava
no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era
feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o
seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial
para mim.
Não
me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente,
ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu
pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos
que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir
cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três
dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça
- eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e
pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas
minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da
meninice.
Mas
houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não
conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a
pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a
filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara
folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho,
pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia
pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de
pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente
que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi
quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel
crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu
apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura
bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma
fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval,
pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser
outra que não eu mesma.
Até
os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira
tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo,
embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a
fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas
- à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos
pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos
previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria!
Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de
outra, engoli com alguma dor meu orgulho, que sempre fora feroz, e
aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas
por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que
ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de
cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas
os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram
três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me
vesti de rosa.
Muitas
coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No
entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um
destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de
papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem
batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um
alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa
um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto
ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão
exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita,
entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos
outros me espantava.
Quando
horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e
pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas
histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e
desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa,
era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não
era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na
minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas
com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu
morria.
Só
horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela
é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que
para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante
de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e
sensualidade, cobriu meus cabelos, já lisos, de confete: por um
instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então,
mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim
alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
D1 – Localizar informações explícitas em um texto; D7 – Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa.
1. Quem é o narrador da história? A menina que a viveu.
2. O conto gira em torno de um conflito. Que conflito é esse? Justifique sua resposta com passagens do texto.
O desejo da menina de fazer do carnaval, que ela tanto gostava, mas pouco participara. “E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava?” “No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. “
3. Identifique, no texto, os parágrafos que marcam:
a) situação inicial: 1o parágrafo
b) Conflito: 2o ao 5o parágrafo
c) Clímax: 6o ao 10o parágrafo
d) Desfecho: 11o parágrafo
4. Que idade tinha a personagem principal do texto quando os fatos aconteceam? Como você soube disso?
Ela tinha 8 anos. Isso pôde ser observado na passagem “à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos...”
5. Retire do texto trechos que indiquem como a menina se sentia com relação ao carnaval.
“E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava?”
Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
6. Que importância a maquiagem tinha para a menina? Justifique sua resposta com passagens do texto.
Ela queria sair da infância e tornar-se logo uma moça. Maquiada, ela se sentia menos criança e mais moça: “eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.”
“o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil “
7. Observe: “Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto...” Esse trecho mostra que o narrador-personagem conta os fatos em um tempo diferente do acontecido. Em que momento da vida da protagonista ocorreram os fatos narrados?
Na infância dela.
8. Em que momento da vida da protagonista ela nos conta sua história? Justifique com passagens do conto.
A protagonista já é adulta quando narra os fatos. “ este me transportou para a minha infância”; “Nunca tinha ido a um baile infantil...”; “eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável “